quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Notas sobre o encontro com textos.



De resto abomino tudo aquilo que me instrui sem aumentar imediatamente a minha atividade.
Goethe. Carta a Erckeman.

Esse breve ensaio brota de um assombro! Nasce da desconfiança de alunos frente à leitura de textos filosóficos. Indaga sobre as possíveis relações entre os vivos e os mortos, entre o instante reificado por uma memória e a presença de um passado expresso na escrita de um filósofo. Tergiversa sobre a acusação: o pensar dos filósofos é um impedimento ao pensamento. Constituem-se como uma barreira à experiência de se abrir ao mundo, de se abrigar ao problemático do existir. Por essa razão, incapazes de instaurar pensares e esculpir pensadores. A História da Filosofia e as exigências inerentes à teia conceitual de um pensamento são um grande empecilho para o exercício do pensar! Essa denúncia brotou dos paticipantes de uma disciplina.
 
A disciplina pretendia situar implicações das filosofias da diferença nos horizontes da educação. O curso orientou-se pela questão do corpo no pensar de Nietzsche e Deleuze. No decorrer das aulas, vários textos foram apresentados, entre eles, uma passagem de Assim Falou Zaratustra, intitulada, Os desprezadores do Corpo. Um longo debate se deu em função da exposição de alguns elementos compreensivos do texto de Nietzsche. A exposição sobre o tema do corpo em Nietzsche ficou sobre responsabilidade de um dos alunos que cursava a disciplina. A escolha do aluno se deu por seu interesse na questão e por sua aproximação ao pensamento de Nietzsche.
Interessa-nos deslocar alguns elementos da relação que se estabeleceu entre os alunos, a fala daquele que pretendeu comentar e mediar o texto e a presença da História da Filosofia no encontro dos estudantes e ouvintes da pós-graduação mediada pela fala de Nietzsche.
A relação estabelecida entre esses três elementos é um dos traços comuns à construção de aulas de filosofia, nas quais habitam alunos, professores de filosofia e textos de filósofos, chancelados pela História da Filosofia. Esse triângulo relacional apresenta-se como um modo comum daquilo que ocorre na formação em filosofia e corriqueiramente com aulas nas disciplinas de filosofia. Alunos, texto e um professor. Professor, alunos e um texto; Texto, alunos e um professor; professor, texto e uns alunos; Presente, passado e futuro; Instante, memória e fragmentos... Trivialidades...  Trivialidades... E, se?!

O encontrar dos encontros.  

“Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma coisa, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si.” (NIETZSCHE, 1888/2001, pg. 66).

Como se dá um encontro? Quando ocorre um encontro? Do lat. de cŏntra – defrontar-se. Estabelecer-se junto e diante de. Fluxos ininterruptos de tensão permanente. Um dar-se diante de com fins a impor o sentido que expressa um horizonte de necessidade, tornando visíveis as condições demandadas por sua efetivação. No jogo do encontro se dá a clareira da pletora. Debate constante de forças que almejam a extensão do domínio.  Não se pode pretender-se ao encontro sem a presença do que se encontra nos encontros: o caráter hegemônico da tensão dos afetos que impõe sua atuação. Por presença no que se encontra tomam-se os afetos de mando que expressam ininterruptamente suas reivindicações de poder. Dão-se como uma imposição, nos choques e entrechoques que tornam visíveis o ímpeto de hegemonizar suas hierarquias. Trata-se em todo caso de esculpir, estruturar, dar forma e voz.  Nesse nível habitam apenas graus. Graus que expressam modos de atuação em que se efetivam a afirmação de determinada condição perspectival. Exigências valorativas, formas e sintomatologias, eis a situação relacional da forças. Nos encontros povoam-se mundos...  
Desse lugar, não nos é permitido supor qualquer passividade nas relações em que se dão os encontros, pois o jogo das disputas é o e-vidente no encontro. Textos que se afirmam, alunos que se afirmam, professores que se afirmam, vozes e ouvidos que se afirmam. Trivialidades? Passividades que se sujeitam aos mandos e às obediências ou imposições de sentido e destino. Ludicidades? Um uso, um órgão, funções que se estabeleceram em um devir carregado de oposições e disputas. Trata-se em último caso de condições de sobrevivência.  
O que devém no encontro apresenta-se em devir, pois que algo há, que sendo, não deveio e ainda não deverá? Sem interlocutor um texto perdura como uma sintomatologia. Descendo as suas exigências, contempla-se os seus graus... os seus modos de hierarquizar e exigir. Mesmo em silêncio um texto expressa suas condições de inteligibilidade, seus sins e nãos, suas vidas e mortes. Na poeira da estante paira o exemplar de uma vida. Escrita e vida são indissociáveis. Qualquer palavra de um mundo possível nasce dessas condições.
Desnaturalizando as relações nos encontros.
Um eu previamente existente? Uma compreensão previamente existente? Um aluno previamente existente? Ou, modos de ser das relações? Relar, esbarrar em um enfrentamento. As condições exigidas por um eu supõem o conjunto de valores que constroem seu estilo. Por estilo tomamos as configurações em uma determinada forma. Estilizar é o resultado das disputas que se dão nos encontros. Estilo é o resíduo provisório da pletora dada nos encontros.  No encontro as disputas clamam pela emergência do novo, da instituição de uma outra configuração. A noção de agenciamento é potente, pois indica que a construção se dá na relação que constitui um outro possível da experiência de ser e estar no mundo. Encontrar é dar-se no aguardar de uma provisoriedade... Uma espécie de gratidão. As inumeráveis possibilidades de encontro sugerem provisoriedades indefinidas de formas. A provisoriedade de uma forma dá-se no jugo ininterrupto das disputas no nível molecular das forças. Um texto, um professor, um aluno, estilos que se apresentam no visível, no campo frutífero da instituição das formas. A plasticidade como a resultante do encontro em que se agenciam as relações.

Do presente, do passado e do futuro. 

Um modo de ser do encontro dá-se com o passado, porém quanto de passado exige e suporta um presente? Por presente toma-se a resultante daquilo que se afirma no instante do agora. A afirmação remete para a estilização de uma hierarquia provisória, no jogo ininterrupto dos encontros que firmam relações. O presente é o durar de um instante da forma.
Quanto de futuro exige e suporta um passado? No jugo daquilo que se afirma na memória do presente mantém-se parcelas de passado, de estilos que se revisitados por outras épocas – conjunto de estilos que se sobrepõem em determinado momento – exigirão suas condições de afirmação, ousando perdurar nos encontros que virão.
Encontrar com parcelas afirmativas de estilos passados figura-nos como o convite ao encontro, porém, quanto de passado exige um presente? Há passados que ainda são futuros? Há passados que ainda tornar-se-ão presentes? Nesse ponto reside o trânsito em que se afirmam parcelas infinitas de passado. As relações vitais que se podem estabelecer entre o presente e o passado apresentam-se como o a se pensar da nossa questão, pois quanto de passado exige e permite o nosso presente? A superação do instante no presente acaba por exigir a memória, mas quanto de memória necessita o presente? Memória e presente, passado e presente, memória e instante como indicies de relações que se efetivam em direção a uma vitalidade.
Por vitalidade toma-se a capacidade de tornar próprio o que é distante, de se esculpir em uma relação a partir de outras exigências. Se em nós a memória figura como um escape do instante, de uma abertura para um sentido para além do instante e da sua fluidez permanente, possibilitando zonas de permanência, por outro lado, pode vir a cristalizar momentos, construir monumentos. Após o advento da memória, o risco que se corre é de se perder na conservação do mesmo, na busca de afirmar uma identidade e com fins a preservação das semelhanças, sua conservação. A memória nos salva do instante, mas pode nos aprisionar na lógica do mesmo. A memória como a cristalização de uma hegemonia, da expressão de um estilo em uma forma. O contato com zonas de passado, através da memória, nos coloca diante da pletora das interpretações, do jogo das interpretações.

A História da Filosofia e a presença da memória no presente.
Uma vida que quer se afirmar para além da provisoriedade do instante exige a permanência? A permanência exibe as condições valorativas nas quais se estrutura e se cristaliza um estilo que expressa um modo de ser e de se dar um mundo. O encontro com o texto de outrem supõe a pletora das relações entre os afetos. Entrar em relação com um texto do passado, revisitando-o no presente, é praticar o agônico da construção da forma. Desse modo, não nós é permitido ir aquém desse limite das relações, pois trata-se da hegemonia de uma forma e de um estilo – de uma tática. Reduzir a compreensão ao jugo das forças é instaurar a pletora, quer diante da memória, quer diante da suspensão provisória do instante. Porém, como se dá no jogo das relações a assimilação? Trata-se de deixar-se determinar pelo sentido que se manifesta nas suas exigências vitais?
A História da Filosofia se constituiu um empecilho ao pensamento quando sua compreensão efetiva-se apenas como lembrança, como resido sonoro de um dito, de uma vida. Sem o arrombamento é sempre inócua, apesar de ser um modo possível da relação! A exigência da mera lembrança soa como paradoxal, pois como é possível distinguir as exigências de incorporação de uma relação em que o jogo das tensões se afirma e o mero exercício de decorar, de se aproximar com fins apenas ao saber?  Indicie crítico: ser como os gregos: o que apreendiam, logo queriam viver? Como viver aquilo que se apreende como passado se o passado mesmo já não é mais possível?  Uma sabedoria ética diante do exercício de distanciar-se de si mesmo, de abrir mão da hegemonização do mesmo de si... Gratidão, como espaço fundante da compreensão. Contudo, quanto de gratidão supõe e exige um presente?

Na senda de uma relação. O intempestivo e a abertura ao devir do que há. O homem louco e o anúncio de algo para além do tempo!

“O jogo do mundo, imperioso,
Mistura ser e aparência: -
O eterno-insano
Nos mistura dentro!...

É conhecido o anúncio da morte de Deus, pelo Homem louco, em Gaia Ciência. “Nunca ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? Um dito, um escrito, uma constatação e uma exigência. Uma porção de presente e de afirmação em um estilo para um tempo que ainda não. Um dito: propõem em uma linguagem a construção de um sentido que instaura um mundo outro para o Ocidente. Procurar Deus em plena manhã, procurar Deus em pleno vigor do idealismo alemão – a flor do esclarecimento do séc. XVIII e das pretensões legitimadoras da razão transcendental kantiana. Procurar Deus em meio a nova aurora que se anuncia e se apresenta -  quanto de loucura suporta a razão, e quanto de loucura há na razão? Dito por um homem que ultrapassa o tempo por reconhecer demasiadamente suas intenções, em um salto para além do humano e da suposta sanidade da razão. Um dito que põe uma interrogação onde havia uma simples e fulgurante afirmação – eu, Deus, sou a verdade! A constatação: a maior invenção humana é destronada com a certeza de que sua procura é vã, pois o que sempre esteve à mão, não mais se encontra, pois ‘Para onde foi Deus?, gritou ele! O a se pensar da questão põe em sua vidência o problema que nos diz respeito, pois o presente de Nietzsche estava a altura das suas exigências? Os homens da praça pública estão a altura daquilo que o seu tempo exige-lhes? O homem louco não deixa dúvidas: “Eu venho cedo demais!”
Cedo demais! Feito um raio! Ser portador de uma exigência, de uma inusitada experiência. Sobretudo, na densidade de uma experiência. Na experiência instaura-se uma outra disposição de forças, uma nova configuração no plano das formas e da composição de um estilo. Cedo demais! A questão da assimilação aciona o sentido da impropriedade, uma distância que convida ao encontro, contudo exibe a diferença nas avaliações e do jogo de signos expressivos de uma sintomatologia específica. Estar no tempo, ser filho do tempo, contudo para além do tempo. No tempo e contra o tempo com fins a afirmar o advir. Seria o para além do tempo a condição pela qual um pensamento inaugura um mundo? Seria a exigência de outro modo de pensar, na sinfonia do pensamento, correlata à negação do tempo, da violência que torna sensível a presença mesma do pensador e do pensamento? O que dá a pensar, figura como signo de uma exigência outra, de uma aurora?

O mergulho no pensamento e a experimentação do assombro.
O incomodo gerado pela presença de um pensamento, o deslocamento exigido pela sentido imposto por uma configuração outra, soa-nos como o paradoxal do encontro com o pensar de um autor, pois se já sabíamos daquele pensar ou se o assimilamos sem algum violência, não houve pensar. A assimilação pela semelhança reduz a diferença ao mesmo de uma identidade. Sua exclusão retira-o do universo da compreensão por abolir o embate. A tensão, via de regra, afirma-se nos afetos disparados por um pensamento, das suas implicações nos âmbitos do ser e estar no mundo. Um pensamento que não arromba, que não violenta, não é capaz de restituir o assombro a partir do qual nasceu. A pertubação, a desorganização gerada pelo  esbarro com exigências outras pode instaurar a potência de mergulhar na experiência que o gerou?... Pensar a partir da História da Filosofia é uma re-sensibilização daquilo que disparou os processos da produção daquele conjunto de signos. O balbucio nas línguas, no gozo do pensador na linguagem, não é capaz de esgotar as exigências sensíveis pelas quais o pensamento brota. Vir cedo demais.  Não ser desse tempo marcam os pensares e os pensadores na Terra! A fuga aos portos seguros da afirmação daquilo que já se sabe, da identidade na dessemelhança, e da manutenção de uma memória são apenas indícios do jogo que pretende perdurar suas afirmações. Desse modo, a História da filosofia,  no conjunto dos seus textos, é um desafio para aqueles que como o mundo jogam a partida até o seu lance último: a abertura... Nada mais humano... Manter-se protegido, abrigado, por uma fresta de luz, e porque não, de sombra...  À luz do mesmo, nada sobrevive, apenas a semelhança pode-se afirmar: Venho cedo demais... Deus morreu!  Somos nós, eu e tu, os seus assassinos... Tornar sensível a experiência de um pensar...
!!!!

Uma velha e forte porta foi abandonada a cães bravios.
No início, desconheciam a profundidade da possibilidade.                         Poderiam comer uns aos outros, poderiam deixar de ser.                                                            Mesmo o lugar da porta velha deixaria de ser e um grande nada viria a perdurar sobre todos os seguintes anos...                                                                            Na altura do uivo, um cão surdo, aos prazeres da lua, desferiu o seu golpe: temos ainda o que somos...                                                                Celebraram festivamente aquela noite... Como crianças queimaram portas pelo caminho -                                                                                                                 Se temos chaves, de que valem portas?
       

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