Corpo (e). Como a outra identidade. É meu.
Por: Marcos Vinícius Leite.
A questão do corpo (e)
Chamou-me a atenção nas nossas considerações iniciais a recorrente utilização da conjunção (e) na visada sobre o corpo. Por ser uma conjunção que relaciona duas proposições de conteúdos distintos a sua utilização aponta para a manutenção do imaginário dualista, presente no modo como se tomou o corpo no mundo ocidental – mente-corpo; alma-corpo; pensamento-corpo; Dizer corpo (e) significa reincidir na certeza naturalizada de que para além do corpo há algo, que não o próprio corpo. A questão aqui reside em considerar o corpo como a condição pela qual toda a realidade de ser se expressa como uma forma tomada pelo e no corpo. A expressão na, e, por uma forma do, coaduna com os processos de subjetivação, presentes na densidade temporal e histórica das nossas relações. Um outro ponto, é dizer, e pensar o corpo , a partir da ideia de que para além do corpo há algo. Aqui, obviamente, não estamos nos referindo ao problema do mundo exterior e dos outros corpos, pois, dependendo do modo com entendermos a noção de corpo é que poderemos analisar a questão das relações com as alteridades e com o mundo exterior. O fato a ser delineado é que podemos dizer corpo (e) e dizer corpo, sendo, em ambos os casos, passível de investigação as implicações sobre o modo em que se constituirá voz- do- corpo. A noção de voz soa-nos como a pertença em um conjunto de signos considerados como expressão das tensões que pulsam. Dar voz é exteriorizar sonoramente o grupo de tensões constitutivas. Por expressão não se considera a representação de um sentido doado por uma formulação interior ao jogo da expressão dos afetos. Trieb: impulsos. Nietzsche nos ajuda quando propõe que não é possível ultrapassar o mundo da vontade de poder ou dos impulsos artísticos. Se pensarmos por essa via, a construção de um discurso coadunará com as suas necessidades de sentido, abertas na estruturação da sua hierarquia de valor. Mas de qualquer modo, a fala mesma se dirige para os problemas da formulação de si mesma. Podemos também, caminhar na direção da construção da voz na tensão mesma da voz. Mas e o sentido? Não há referência, nem muito menos verdade. Então, voltemos à condição de produzir um discurso, que na sua produção, produz o sujeito que fala. Cheguei a um impasse... Possa descrever a minha relação com o problema, posso constituir-me como problema e posso buscar o modo pelo qual pensaram o problema. A primeira via, soa-me como bem; a segunda também, se não vejamos.
A experiência como linguagem que fala da linguagem:
Um corpo sem uma ideia não fala. Um corpo sem questão não se pronuncia. O pronunciar de um corpo dá-se na linguagem que enamora do sentido. O sentido dá-se no dito, e não no reenvio. Um corpo-falante. Um grilo falante. Um pulsar... Uma razão para dizer algo sobre... Na linguagem o ser socializado se revela. Vela-se... Mais e o resto?! Dizer do dizer quando se diz... Quando se diz não há um centro, mas um cadenciar que se vai dizendo... Dizer sobre coisa alguma, mas dizer... Dizer intenso. Um corpo projeta-se na teia da linguagem que se propõe como um enigma. O enigma da linguagem reside no estonteamento da linguagem. Um exercício. O beijo da namorada: um rosto toca outro rosto; as mãos suadas se tocam na envergadura do ventre. A pulsação nas faces rosadas se mostra liquida, quando passa a escorrer os fluídos. A fluidez dos fluídos inaugura um olhar que roça a boca - deseja a boca do outro. Nas bocas se concentram uma chaga de calor e de língua. Quando as línguas sonham em se roçar os jogos dos corpos se jogam. As bocas se tocam e as línguas se lambem... Um carro está passando na rua. É azul... Uma criança chora e ri ao mesmo tempo. No fluxo dá-se a linguagem que comunica estados. Ontem, na nudez da caminhada, o azul do céu. A sua cor ecoou como a mais bela. Ao longe, o sublime da chuva desencantava a rugosidade do cinza. A intempestuosidade do cinza desaguava sobre o verde da colina que abrigava pardais. Ao longe, no monte, céu e terra davam-se as mãos. Um cachorro mia... Na oculta inscrição, no batente, da soleira da porta, os homens do futuro, que já estiveram por aqui, sentam e choram. Na lágrima que brota do corpo a experiência de dizer ilumina-se: na linguagem nada há, a não ser o sentido e mundo que instaura... Habita-se na linguagem, habita-se em um mundo.
No início é se manifestou... Distante estava da certeza de que poderia não-ser, porém é lutava com era. Quando era deu-se a é, transmuto-o em era. Era jamais fora o que era. É quis restituir sua soberania. Numa estonteante luta de dentes era fez é tornar-se era... Eis a história de é e era... Nomeia-se tempo.
Era de olhos azuis, cor do mar...
A linguagem é um milagre.