sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Da apropriação, na imanência da pletora dos sentidos.


Da apropriação, na imanência da pletora dos sentidos.
Por:  Marcos Vinícius.
“A linguagem sonha.”
Bachelard, G.

Trata-se de uma indagação. De colocar-se diante de um questionado formulado em questão. Por questão toma-se a violência que instaura um assombro em algo, com algo e por algo – limite finito da afirmação que brota como aparência. É da condição da aparência impor-se como assombro, estabelecendo-se como um possível em uma questão. Jogar-se no assombro de um questionamento denomina-se também de pensamento. Um dos modos do pensamento é se lançar na dança do pensar e se mover em um questionamento – bailando nas vielas abertas por algum sentido. No caso, trata-se da ocorrência da apropriação, do fato da apropriação. Como se dá a apropriação e não como se deve dar uma apropriação -  há um imbricação visível entre o fato da apropriação e o seu assim se deve. O fato da apropriação apresenta-se no visível do mundo, na sua emergência como ininterrupta aparência.   
Trata-se da apropriação. O remetimento semântico indica uma relação de proximidade entre a apropriação e o significado do termo próprio.  O próprio - adj. Pertencente, adequado. Carregado e imanente ao sentido do verbo - Ser propriedade ou parte de. Do lat.  Perteecer -  Adequar: adaptar, tornar próprio.  Pertencer, adequado. Ser propriedade ou parte de...
Não se trata da propriedade de algo, de alguma essência.  Indaga-se o fato da propriedade e das suas condições, com fins a problematizar a questão de como se dá um possuir. Como apresenta-se na paixão da posse a questão da apropriação?  Posse, possessão e apropriação se dão como o a se pensar do questionado da questão.
A posse advém no entre de uma relação.  Possuidor e possuído se jogam no entre da sua relação. É da condição da posse que aquilo que se passou a possuir lance-se anteriormente como o a se possuir. É na relação do encontro que se estabelece o a se possuir que o jogo da sua presentificação se fez no instante da possessão. Habitar o jogo da possessão surge-nos como o mergulho no questionado da questão.  
Por propriedade toma-se também o pertencer a alguém. Um modo possível de ser da posse – afundada nos limites de sentido da possessão. Por possessão compreende-se o estar em profundo acordo com. Por acordo, denomina-se o submetimento ocorrido em um conflito. O acordar dá-se no processo que se instaura e se insinua na relação de possessão. É da ordem do acordo um jogar. No jogo, a ludicidade da afirmação, encontra-se na tonalidade afetiva da sua aparência, no trânsito da sua querença;   
No pertencer a alguém expressa-se um modo do pertencimento. O dar-se como um acessório – uma bolsa, uma caneta, uns óculos... Nesse caso, o pertencer se dirige à superfície em algo ou de algo. Porém, pertencer, diz também, do mais próprio. Nesse caso, o pertencido ressoa no próprio e com o próprio. Por próprio toma-se o si mesmo. No si mesmo do próprio reside a condição da possessão da posse. Para aquém do possuído e do possuidor há o encontro que se instaura na relação da posse. Não se pode propor a posse sem o contato que a institui como possível – os jogos das possessões.
Indagar sobre a posse lembra-nos um possuidor. Indagar sobre o possuidor exige-nos um próprio. Propor um próprio como condição da posse lança-nos na possessão. A possessão se dá em uma relação, em um modo de se dar do encontro, em que as submissões tomam forma. Por submissão nomea-se o exercitar-se das atuações. Por atuações compreende-se o modo de se dar das ocorrências. De algum modo, as ocorrências são a expressão de relações de possessão. Na possessão instaura-se um efetivar em uma direção.
O apropriar-se é um submeter ou submeter é condição do apropriar-se?
Habitamos sob a influência de um determinado horizonte de sentido. Por sentido toma-se a condição que instaura um conjunto finito de significados. Os significados encarnam a sua forma na imersão em um sentido, do brotar em um sentido. A relação entre o sentido e o significado não se dá por referência. A relação entre os sentidos se dá por influência. Por influência, toma-se o  modo de ser de alguma atuação. A condição da influência dá-se no fluir. Do lat. Fluere. Dá-se como sentido é expressar-se como fluxo. No fluxo dá-se um perpétuo jorrar. É da condição do sentido brotar incessantemente com expressão do fluxo que se impõe. Um modo de ser do fluxo é expressar-se como sentido. Por expressão toma-se a reincidência em um modo de ser do sentido.  
Do modo de ser na relação entre sentidos no horizonte da apropriação.
Se os sentidos impõem incessantemente, qual seu modo de interrelação? O que se impõe almeja perdurar com fins a expandir o seu mesmo e a sua diferença. Por existir toma-se o fato de emergir como sendo em uma aparência.  De qualquer modo, na aparência teima a presença de um sentido que se impõe. Em qualquer aparência expressa-se o efetivar de um sentido, sua pretensão de compor um significado a partir de si. A pletora de significados aponta para a divergente diversidade dos sentidos.  
Na apropriação mantém-se o jogo das imposições que carregam o destino de um sentido. A imanência do sentido, quando da apropriação, instaura-se na pletora dos afetos. Por afetos toma-se a brotação na qual emerge o significado de um determinado horizonte de sentido. Afetos, sentidos e significados roçam a si mesmos nos jogos do tempo e da eternidade. Para além do afeto nada há. Em qualquer afeto mantém-se a afirmação da mesmidade da sua diferença. É da ordem dos afetos fazer o dizer em um língua a aparência do que são.  Nas aparências do mundo jogam-se e se dispõe a pletora dos afetos.
Do encontro na gratidão.   
Uma das passagens possíveis aos afetos denomina-se linguagem. A linguagem pode se dar como uma língua na composição com a cor, na composição com o olfato, na composição com o som, e na composição com o tato, etc. A forma de uma língua abriga-se em um horizonte de sentido possível. Trata-se nesse caso da composição com o som. A língua fala... No encontro com a língua falada depara-se com a imposição de um sentido que impõe-se na sua mesmidade e diferença. No encontro com um texto advém o seu significado. Para aquém do dito de um texto nada há – a imanência do seu impor-se funda-lhe. Encontrar-se com textos é dar-se na possessão. Ser apropriado por, jogar-se em um mergulho, em um sentido que permanentemente se impõe, é o destino do leitor. Gratidão é modo de ser da relação do encontro com o texto, do leitor... As suas núpcias... A sua fecundação... Por fecundação toma-se o submeter-se do próprio na apropriação. É do signo da apropriação também dominar, de propor-se em um salto,  fecundar-se também é um assimilar. Assimilar é fazer imperar em uma direção, propor um submeter. 
O império do som e o destino da apropriação.
Na repetição de uma forma dá-se uma formação. A condição da repetição é afirmação de um sentido em uma direção. A incorporação soa como a constituição em uma repetição e a apropriação o modo de ser da repetição em uma direção. Apropriar dá-se no jogo do sentido e da sua repetição nos jogos da pletora dos afetos. O impedimento de uma apropriação se dá na soberania de uma forma, o que rompe é a experiência da submissão.


Distantes estão os pássaros de rapinagem, 
sobrevoam as aldeias.
Quando olham,
apequenam e planificam a  superfície do plano.
Outrora, mergulhavam com rapidez.
Nas garras, trazem suas presas.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Notas sobre o encontro com textos.



De resto abomino tudo aquilo que me instrui sem aumentar imediatamente a minha atividade.
Goethe. Carta a Erckeman.

Esse breve ensaio brota de um assombro! Nasce da desconfiança de alunos frente à leitura de textos filosóficos. Indaga sobre as possíveis relações entre os vivos e os mortos, entre o instante reificado por uma memória e a presença de um passado expresso na escrita de um filósofo. Tergiversa sobre a acusação: o pensar dos filósofos é um impedimento ao pensamento. Constituem-se como uma barreira à experiência de se abrir ao mundo, de se abrigar ao problemático do existir. Por essa razão, incapazes de instaurar pensares e esculpir pensadores. A História da Filosofia e as exigências inerentes à teia conceitual de um pensamento são um grande empecilho para o exercício do pensar! Essa denúncia brotou dos paticipantes de uma disciplina.
 
A disciplina pretendia situar implicações das filosofias da diferença nos horizontes da educação. O curso orientou-se pela questão do corpo no pensar de Nietzsche e Deleuze. No decorrer das aulas, vários textos foram apresentados, entre eles, uma passagem de Assim Falou Zaratustra, intitulada, Os desprezadores do Corpo. Um longo debate se deu em função da exposição de alguns elementos compreensivos do texto de Nietzsche. A exposição sobre o tema do corpo em Nietzsche ficou sobre responsabilidade de um dos alunos que cursava a disciplina. A escolha do aluno se deu por seu interesse na questão e por sua aproximação ao pensamento de Nietzsche.
Interessa-nos deslocar alguns elementos da relação que se estabeleceu entre os alunos, a fala daquele que pretendeu comentar e mediar o texto e a presença da História da Filosofia no encontro dos estudantes e ouvintes da pós-graduação mediada pela fala de Nietzsche.
A relação estabelecida entre esses três elementos é um dos traços comuns à construção de aulas de filosofia, nas quais habitam alunos, professores de filosofia e textos de filósofos, chancelados pela História da Filosofia. Esse triângulo relacional apresenta-se como um modo comum daquilo que ocorre na formação em filosofia e corriqueiramente com aulas nas disciplinas de filosofia. Alunos, texto e um professor. Professor, alunos e um texto; Texto, alunos e um professor; professor, texto e uns alunos; Presente, passado e futuro; Instante, memória e fragmentos... Trivialidades...  Trivialidades... E, se?!

O encontrar dos encontros.  

“Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma coisa, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si.” (NIETZSCHE, 1888/2001, pg. 66).

Como se dá um encontro? Quando ocorre um encontro? Do lat. de cŏntra – defrontar-se. Estabelecer-se junto e diante de. Fluxos ininterruptos de tensão permanente. Um dar-se diante de com fins a impor o sentido que expressa um horizonte de necessidade, tornando visíveis as condições demandadas por sua efetivação. No jogo do encontro se dá a clareira da pletora. Debate constante de forças que almejam a extensão do domínio.  Não se pode pretender-se ao encontro sem a presença do que se encontra nos encontros: o caráter hegemônico da tensão dos afetos que impõe sua atuação. Por presença no que se encontra tomam-se os afetos de mando que expressam ininterruptamente suas reivindicações de poder. Dão-se como uma imposição, nos choques e entrechoques que tornam visíveis o ímpeto de hegemonizar suas hierarquias. Trata-se em todo caso de esculpir, estruturar, dar forma e voz.  Nesse nível habitam apenas graus. Graus que expressam modos de atuação em que se efetivam a afirmação de determinada condição perspectival. Exigências valorativas, formas e sintomatologias, eis a situação relacional da forças. Nos encontros povoam-se mundos...  
Desse lugar, não nos é permitido supor qualquer passividade nas relações em que se dão os encontros, pois o jogo das disputas é o e-vidente no encontro. Textos que se afirmam, alunos que se afirmam, professores que se afirmam, vozes e ouvidos que se afirmam. Trivialidades? Passividades que se sujeitam aos mandos e às obediências ou imposições de sentido e destino. Ludicidades? Um uso, um órgão, funções que se estabeleceram em um devir carregado de oposições e disputas. Trata-se em último caso de condições de sobrevivência.  
O que devém no encontro apresenta-se em devir, pois que algo há, que sendo, não deveio e ainda não deverá? Sem interlocutor um texto perdura como uma sintomatologia. Descendo as suas exigências, contempla-se os seus graus... os seus modos de hierarquizar e exigir. Mesmo em silêncio um texto expressa suas condições de inteligibilidade, seus sins e nãos, suas vidas e mortes. Na poeira da estante paira o exemplar de uma vida. Escrita e vida são indissociáveis. Qualquer palavra de um mundo possível nasce dessas condições.
Desnaturalizando as relações nos encontros.
Um eu previamente existente? Uma compreensão previamente existente? Um aluno previamente existente? Ou, modos de ser das relações? Relar, esbarrar em um enfrentamento. As condições exigidas por um eu supõem o conjunto de valores que constroem seu estilo. Por estilo tomamos as configurações em uma determinada forma. Estilizar é o resultado das disputas que se dão nos encontros. Estilo é o resíduo provisório da pletora dada nos encontros.  No encontro as disputas clamam pela emergência do novo, da instituição de uma outra configuração. A noção de agenciamento é potente, pois indica que a construção se dá na relação que constitui um outro possível da experiência de ser e estar no mundo. Encontrar é dar-se no aguardar de uma provisoriedade... Uma espécie de gratidão. As inumeráveis possibilidades de encontro sugerem provisoriedades indefinidas de formas. A provisoriedade de uma forma dá-se no jugo ininterrupto das disputas no nível molecular das forças. Um texto, um professor, um aluno, estilos que se apresentam no visível, no campo frutífero da instituição das formas. A plasticidade como a resultante do encontro em que se agenciam as relações.

Do presente, do passado e do futuro. 

Um modo de ser do encontro dá-se com o passado, porém quanto de passado exige e suporta um presente? Por presente toma-se a resultante daquilo que se afirma no instante do agora. A afirmação remete para a estilização de uma hierarquia provisória, no jogo ininterrupto dos encontros que firmam relações. O presente é o durar de um instante da forma.
Quanto de futuro exige e suporta um passado? No jugo daquilo que se afirma na memória do presente mantém-se parcelas de passado, de estilos que se revisitados por outras épocas – conjunto de estilos que se sobrepõem em determinado momento – exigirão suas condições de afirmação, ousando perdurar nos encontros que virão.
Encontrar com parcelas afirmativas de estilos passados figura-nos como o convite ao encontro, porém, quanto de passado exige um presente? Há passados que ainda são futuros? Há passados que ainda tornar-se-ão presentes? Nesse ponto reside o trânsito em que se afirmam parcelas infinitas de passado. As relações vitais que se podem estabelecer entre o presente e o passado apresentam-se como o a se pensar da nossa questão, pois quanto de passado exige e permite o nosso presente? A superação do instante no presente acaba por exigir a memória, mas quanto de memória necessita o presente? Memória e presente, passado e presente, memória e instante como indicies de relações que se efetivam em direção a uma vitalidade.
Por vitalidade toma-se a capacidade de tornar próprio o que é distante, de se esculpir em uma relação a partir de outras exigências. Se em nós a memória figura como um escape do instante, de uma abertura para um sentido para além do instante e da sua fluidez permanente, possibilitando zonas de permanência, por outro lado, pode vir a cristalizar momentos, construir monumentos. Após o advento da memória, o risco que se corre é de se perder na conservação do mesmo, na busca de afirmar uma identidade e com fins a preservação das semelhanças, sua conservação. A memória nos salva do instante, mas pode nos aprisionar na lógica do mesmo. A memória como a cristalização de uma hegemonia, da expressão de um estilo em uma forma. O contato com zonas de passado, através da memória, nos coloca diante da pletora das interpretações, do jogo das interpretações.

A História da Filosofia e a presença da memória no presente.
Uma vida que quer se afirmar para além da provisoriedade do instante exige a permanência? A permanência exibe as condições valorativas nas quais se estrutura e se cristaliza um estilo que expressa um modo de ser e de se dar um mundo. O encontro com o texto de outrem supõe a pletora das relações entre os afetos. Entrar em relação com um texto do passado, revisitando-o no presente, é praticar o agônico da construção da forma. Desse modo, não nós é permitido ir aquém desse limite das relações, pois trata-se da hegemonia de uma forma e de um estilo – de uma tática. Reduzir a compreensão ao jugo das forças é instaurar a pletora, quer diante da memória, quer diante da suspensão provisória do instante. Porém, como se dá no jogo das relações a assimilação? Trata-se de deixar-se determinar pelo sentido que se manifesta nas suas exigências vitais?
A História da Filosofia se constituiu um empecilho ao pensamento quando sua compreensão efetiva-se apenas como lembrança, como resido sonoro de um dito, de uma vida. Sem o arrombamento é sempre inócua, apesar de ser um modo possível da relação! A exigência da mera lembrança soa como paradoxal, pois como é possível distinguir as exigências de incorporação de uma relação em que o jogo das tensões se afirma e o mero exercício de decorar, de se aproximar com fins apenas ao saber?  Indicie crítico: ser como os gregos: o que apreendiam, logo queriam viver? Como viver aquilo que se apreende como passado se o passado mesmo já não é mais possível?  Uma sabedoria ética diante do exercício de distanciar-se de si mesmo, de abrir mão da hegemonização do mesmo de si... Gratidão, como espaço fundante da compreensão. Contudo, quanto de gratidão supõe e exige um presente?

Na senda de uma relação. O intempestivo e a abertura ao devir do que há. O homem louco e o anúncio de algo para além do tempo!

“O jogo do mundo, imperioso,
Mistura ser e aparência: -
O eterno-insano
Nos mistura dentro!...

É conhecido o anúncio da morte de Deus, pelo Homem louco, em Gaia Ciência. “Nunca ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? Um dito, um escrito, uma constatação e uma exigência. Uma porção de presente e de afirmação em um estilo para um tempo que ainda não. Um dito: propõem em uma linguagem a construção de um sentido que instaura um mundo outro para o Ocidente. Procurar Deus em plena manhã, procurar Deus em pleno vigor do idealismo alemão – a flor do esclarecimento do séc. XVIII e das pretensões legitimadoras da razão transcendental kantiana. Procurar Deus em meio a nova aurora que se anuncia e se apresenta -  quanto de loucura suporta a razão, e quanto de loucura há na razão? Dito por um homem que ultrapassa o tempo por reconhecer demasiadamente suas intenções, em um salto para além do humano e da suposta sanidade da razão. Um dito que põe uma interrogação onde havia uma simples e fulgurante afirmação – eu, Deus, sou a verdade! A constatação: a maior invenção humana é destronada com a certeza de que sua procura é vã, pois o que sempre esteve à mão, não mais se encontra, pois ‘Para onde foi Deus?, gritou ele! O a se pensar da questão põe em sua vidência o problema que nos diz respeito, pois o presente de Nietzsche estava a altura das suas exigências? Os homens da praça pública estão a altura daquilo que o seu tempo exige-lhes? O homem louco não deixa dúvidas: “Eu venho cedo demais!”
Cedo demais! Feito um raio! Ser portador de uma exigência, de uma inusitada experiência. Sobretudo, na densidade de uma experiência. Na experiência instaura-se uma outra disposição de forças, uma nova configuração no plano das formas e da composição de um estilo. Cedo demais! A questão da assimilação aciona o sentido da impropriedade, uma distância que convida ao encontro, contudo exibe a diferença nas avaliações e do jogo de signos expressivos de uma sintomatologia específica. Estar no tempo, ser filho do tempo, contudo para além do tempo. No tempo e contra o tempo com fins a afirmar o advir. Seria o para além do tempo a condição pela qual um pensamento inaugura um mundo? Seria a exigência de outro modo de pensar, na sinfonia do pensamento, correlata à negação do tempo, da violência que torna sensível a presença mesma do pensador e do pensamento? O que dá a pensar, figura como signo de uma exigência outra, de uma aurora?

O mergulho no pensamento e a experimentação do assombro.
O incomodo gerado pela presença de um pensamento, o deslocamento exigido pela sentido imposto por uma configuração outra, soa-nos como o paradoxal do encontro com o pensar de um autor, pois se já sabíamos daquele pensar ou se o assimilamos sem algum violência, não houve pensar. A assimilação pela semelhança reduz a diferença ao mesmo de uma identidade. Sua exclusão retira-o do universo da compreensão por abolir o embate. A tensão, via de regra, afirma-se nos afetos disparados por um pensamento, das suas implicações nos âmbitos do ser e estar no mundo. Um pensamento que não arromba, que não violenta, não é capaz de restituir o assombro a partir do qual nasceu. A pertubação, a desorganização gerada pelo  esbarro com exigências outras pode instaurar a potência de mergulhar na experiência que o gerou?... Pensar a partir da História da Filosofia é uma re-sensibilização daquilo que disparou os processos da produção daquele conjunto de signos. O balbucio nas línguas, no gozo do pensador na linguagem, não é capaz de esgotar as exigências sensíveis pelas quais o pensamento brota. Vir cedo demais.  Não ser desse tempo marcam os pensares e os pensadores na Terra! A fuga aos portos seguros da afirmação daquilo que já se sabe, da identidade na dessemelhança, e da manutenção de uma memória são apenas indícios do jogo que pretende perdurar suas afirmações. Desse modo, a História da filosofia,  no conjunto dos seus textos, é um desafio para aqueles que como o mundo jogam a partida até o seu lance último: a abertura... Nada mais humano... Manter-se protegido, abrigado, por uma fresta de luz, e porque não, de sombra...  À luz do mesmo, nada sobrevive, apenas a semelhança pode-se afirmar: Venho cedo demais... Deus morreu!  Somos nós, eu e tu, os seus assassinos... Tornar sensível a experiência de um pensar...
!!!!

Uma velha e forte porta foi abandonada a cães bravios.
No início, desconheciam a profundidade da possibilidade.                         Poderiam comer uns aos outros, poderiam deixar de ser.                                                            Mesmo o lugar da porta velha deixaria de ser e um grande nada viria a perdurar sobre todos os seguintes anos...                                                                            Na altura do uivo, um cão surdo, aos prazeres da lua, desferiu o seu golpe: temos ainda o que somos...                                                                Celebraram festivamente aquela noite... Como crianças queimaram portas pelo caminho -                                                                                                                 Se temos chaves, de que valem portas?
       

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sobre a distância.


Os pássaros incautos caminham na experimentação, rumo aos mergulhos profundos na sua solidão. Distantes estão das seguranças benfazejas da manutenção daquilo que se constrói na narrativa sobre si mesmo, do afeto de mando que os formou em uma dada hierarquia de impulsos. A tensão que os configura leva-os aos limites da afirmação da inalienável pulsão caótica que os abriga, no seu jogo infantil de ir e vir, de criar e destruir. A tensão se mantém. Novas vozes pretendem impor-se na pletora de dizeres possíveis, afinal, o seu vôo descreve imersões em silêncios, em distanciamentos fabulosos do si mesmo que pretende manter o modo de ser do seu voar. Abrigar-se na distensão sobre si mesmo marca os pássaros incautos. Na distância e no afrontamento da unidade habitam. Conjugam prazer e dor no limbo que expressa o seu plainar indefinido.  Decisivamente a distância  os faz voar...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Quem é Nietzsche?

Não conheço o Sr. Nietzsche. Quem é Nietzsche? Quem é? Resposta de quê? Para quê? De quem?Para quem? Nietzschiano é uma fálacia? Como pode alguém ser platônico, marxista, sartriano, nietzschiano, cristão, ateu? No mais, que Nietzsche, Marx, Platão, Sartre,... Forças, afetos, tensões, relações, hierarquias, não respostas, um quem,  um algo ou um alguém.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

NIETZSCHE


 “Só quem não compreende Nietzsche pode dizer que há uma bíblia nietzschiana, pois ele mesmo escreveu que é tão odioso seguir e ser seguido e que ele próprio deveria ser ultrapassado. Esse deveria ser o verdadeiro caminho da humanidade: não seguir, não ser seguida e sempre se ultrapassar. Ser nietzschiano é ultrapassar Nietzsche; é aprender com ele e ultrapassá-lo.”    

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Resposta

Não há resposta.
Não vai haver nenhuma resposta.
Nunca houve uma resposta.
Esta é a resposta.

Gertrude Stein

terça-feira, 8 de maio de 2012

Para aquém da distância...

Quando distante estamos para aquém do modo de se dar como possível, para onde? Não há um movimento prévio que antecipa as decisões do caminho. Para aquém repousa a possibilidade de tornar-se, ultrapassando o limite dado em uma forma. A cristalização da forma coaduna com a certeza da manutenção de um risco, de uma linha que se planifica na ossatura de um território. Dar-se no aquém é estabelecer-se no fora da experiência. O fora dá-se no aquém que se projeta para além da forma. No fundo habita-se o improvável do ido. Quando diante do ido dá-se na fissura do que brota do aquém da forma. Para além e aquém do que se cristalizou na experiência da forma: dar-se como um corpo que se projeta na projeção de mundos possíveis. Verter-se em mundo, dar-se como uma gota de orvalho e de chuva... Se partirmos de um ontologia não haverá distinções entre o mundo dos afetos e das ações. O agir como um modo de expressão dos afetos... Habitar na forma é dar-se como um sempre que se realiza como um mesmo, porém para aquém da forma, há o que dura, o que se mantém na variação  infinita de si mesmo. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O que pode um corpo


Von den Verächtern des Leibes -  Os desprezadores do corpo.

Por Marcos Vinícius Leite.

O que pode um corpo?

Antes de abordamos as passagens em seus conteúdos gostaríamos de destacar duas questões.

Nietzsche se dirige aos desprezadores do corpo, não ao desprezador do corpo, mas a um conjunto de valorações que ultrapassa a presença em algum indivíduo de modo isolado. A extensão é compreensiva, pois o endereçamento do questionamento vai ao encontro das valorações praticadas na cultura Ocidental, no estabelecimento das avaliações que instituíram as relações entre o corpo-alma, o corpo-razão, o corpo-pensamento.

Na medida em que amadurece no seu projeto de Transvaloração dos Valores, Nietzsche avança no ataque aos inauguradores da decadência no Ocidente, acabando por identificá-los como Sócrates, Platão e os instituidores do Cristianismo.  Se tomarmos a afirmação de Ecce Homo como definitiva, como índice do acabamento do projeto crítico de Nietzsche, perceberemos que a oposição derradeira passa a ser entre Dionísio e o cruxificado. Outrora, Dionísio voltava-se contra Sócrates e Platão, haja vista a produção do Nascimento da Tragédia.

Para além dessas afirmações é necessário reconhecer uma outra, o cristianismo é tomado apenas como uma vulgarização do platonismo. Desse modo, o ataque aos desprezadores do corpo alinha-se ao projeto maior do anúncio do Übermensch e da certificação de que o homem é algo que deve ser ultrapassado. Para tal os desprezadores também terão de sê-lo, quando desvelados nas suas intenções valorativas.  

Um outro ponto que merece destaque é a noção de desprezo. Para escaparmos à falsa circularidade, pressuposta na argumentação, na qual a noção a ser definida é pressuposta pela definição, temos que enfrentar a pergunta sobre a origem da noção de desprezo do corpo.

Os procedimentos adotados por Nietzsche na construção dos seus ataques no projeto de Transvaloração dos Valores, deparam-se com os pressupostos genealógicos já desenvolvidos em outras ocasiões. Nietzsche nomeia de  inferência regressiva o modo do seu filosofar, como um desdobramento da análise genealógica, na qual, parte-se da obra, para o autor e do autor para a hierarquia de forças que se estabeleceu como condição que inaugura a forma e o dizer de dada hierarquia constituída em uma relação de forças.

Na análise das forças Nietzsche as identifica como fortes e fracas, ativas e reativas. Na análise genealógica as obras são convocadas a apresentar as suas intenções e sentidos na revelação da quantidade e qualidade das suas forças e suas relações de mando/obediência.

Desprezar é constituir-se na expressão sintomatológica da negação, como fruto das forças no seu aspecto fraco e reativo. No aforismo Os Trasmundanos -  Von den Hinterweltlern -  Nietzsche identifica o desejo de ultramundos como nascido de corpos enfermos. A enfermidade expressa-se como o desejo de sair de si e de se ver como algo para além do corpo e distinto dele.

Estar para além do corpo: é nesse lugar que reside a ação de desprezar, entretanto, o desprezo nasce de um corpo que se pretende para além de si mesmo, não como transcendência de sua própria imanência, mas como negação da imanência, quando da postulação da ideia de falta. A atestação da falta produz a necessidade de se buscar e edificar um além dê.

Por falta, compreende-se a valoração que toma como insuportável a inocência do devir do que há. O desprezo nasce da valoração que clama e exige um para além, revelando-se como um sintoma que interpreta a ausência de sentido daquilo que se apresenta, no modo pelo qual se apresenta, como faltosa. O desprezo nasce na afirmação do que se apresenta como falta. Desprezar seria a valoração que expressa e confunde o ato de negação como seu ato de afirmação. Afirmar pela negação passa a ser o modo pelo qual o corpo desprezador irá se dar como forma/voz. Desse modo, desprezar é atacar como faltoso aquilo que se apresenta como sendo o que é.

Nietzsche nomeia de fraqueza a incapacidade da afirmação cujo desdobramento dar-se-á como ressentimento.  Assim, as forças que jogam nos desprezadores indicam o seu sentido como fracas e ressentidas, acabando por instituir a valoração de corpo faltoso e eu soberano, que se desdobrará na noção de alma-imortal em um corpo-mortal.

A investigação genealógica do dualismo irá destituir a certeza da divisão puro-impuro, seguro-inseguro, alma-corpo, pois irá subverter as valorações  oriundas de sua nomeação filosófica. A nomeação passará a ser apenas expressão de um sintoma, e não mais a posse da verdade do sentido do ser. A nomeação brotaria de um modo possível de hierarquização das forças, que nesse caso, se tornaram hegemônicas a partir da sua fraqueza e reatividade. Reatividade expressa nos momentos civilizacionais assumindo-se como formas-homens, como Sócrate-Platão-Cristianismo, acabando por instituir e ensejar o dualismo, como criação desses corpos. Porém, a hegemonia de uma hierarquia de relações de forças não atesta a sobreposição, pelo afeto de comando, dos casos da afirmação. Nietzsche deixa claro que em muitos momentos históricos as forças fracas e reativas tentaram fazer sucumbir as demais hierarquias possíveis. O fato da fraqueza e do ressentimento não indica a ausência de vitória. Interessante notar que a noção de extermínio brota como sintoma das hierarquias edificadas sobre a égide da fraqueza e do ressentimento.  


Análise do aforismo.

Quero dizer a minha palavra aos desprezados do corpo. Não devem mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas dizer adeus ao seu corpo e emudecer.

A incompatibilidade entre as hierarquias torna-se visível na compreensão que se segue, pois o sentido da fraqueza não poderá ser revertido. Esse é um dos pontos fundamentais ao pensamento de Nietzsche e  sua postulação de que a decadência não é capaz de ser revertida em si mesma, pois o conjunto de valoração é apenas a expressão da composição das forças em uma disposição  de relação. A hierarquia se hegemoniza, através do afeto do mando,  determinismo vinculado à efetivação de uma hierarquização em qualquer relação de forças. As relações e hierarquias são expressões dos processos interpretativos que a tudo ronda e graça. Haja vista a certeza de que a educação para o amanhã dar-se-á hoje, porém, será vivida no amanhã. Assim, querer que a fraqueza se converta em afirmação é uma impossibilidade diante do factum do destino. Nesse ponto reside a radicalidade do eterno-retorno como máxima afirmação, pois articula o assim o foi, como um assim eu quis. A incompatibilidade assinala a possibilidade de abrirmos os espaços para a experimentação de novas hierarquias e corpos, contudo, a condição de possibilidade assenta-se para aquém do humano. O certo é que o abandono das hierarquizações é possível diante do desmascaramento das suas intenções enquanto assentado em um projeto de verdade, apenas sintomas, perspectivas parciais e interessadas tomados como verdades absolutas e universais.  

Eu sou corpo e alma -  Leib bin ich und Seele – assim fala a criança.
Mas o desperto, sabedor, diz – Leib bin ich ganz und gar, und nichts aßerdem, Eu sou todo corpo e nada além disso; e  a alma é apenas uma palavra para algo no corpo – und Seele ist nur (apenas)  ein Wort für ein Etwas (algo)  am Leibe.

A tensão é estabelecida a partir de duas interpretações, ambas oriundas de uma hierarquia possível. Na primeira, o corpo é acrescido de uma alma que o ultrapassa naquilo que é. A alma não se confunde com o corpo, apesar de nele participar. Esse é um problema que ronda todo o dualismo antropológico nas suas expressões, platônica, agostiniana e cartesiana. De qualquer maneira, ocorre em função da noção de falta, pois em todos os casos a postulação da alma separada do corpo nasceu da necessidade de encontrar um fundamento para o mundo.  Nesse ponto há uma convergência entre a construção da metafísica e a construção dos corpos que lhe dizem respeito. A instauração de um padrão para o que se toma como verdadeiro, a instauração de uma moralidade e a instauração de processos que inauguram uma forma-homem se co-pertencem.

Contudo, a segunda hierarquia nasce da composição de uma forma-homem em que a ultrapassagem da metafísica se anuncia. A não correspondência entre as avaliações se dá em função da composição da hierarquia de forças que as antecede. A reversão do platonismo se insinua no momento em que a noção de corpo passa a ser tomada na sua totalidade. Não há mais a distinção entre um corpo e uma alma, mas a alma passa a ser apenas uma palavra para algo no corpo. Dizer sou todo corpo e, nada além disso, nos posiciona no pensamento da e pela imanência.

A primeira circularidade é desfeita, pois foram determinados corpos que construíram a oposição, e por construí-la, o corpo foi visto como uma exterioridade, um não-eu, que deveria ser superado. Assim, o salto para além da interpretação dualista não se esgota na reversão do lugar ocupado na hierarquia vigente, pois colocar o corpo no lugar da alma nos mantém na oposição. A ultrapassagem se dará quando outras interpretações vierem à tona. A proposta de Nietzsche vê o corpo como expressão da vontade de poder, como um modo de ser da realidade - sou todo corpo e nada além disso.  A alma passa a ser apenas uma palavra que, no nosso caso, revela um conjunto de sintomas, a expressão de uma relação de forças em uma determinada hierarquia.

O corpo é uma grande razão – Der Leib ist seine große Vernunft. O corpo é uma grande razão, uma instauração de sentido, a partir das suas exigências de interpretação. Tomar o corpo nessa radicalidade é inclui-lo na dinâmica de produção de sentido como desdobramento das relações de forças no combate  da vontade de poder.

Uma multiplicidade com um único sentido – eine Vielheit mit Einem Sinn, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor – eine Herde und ein Hirt.  Nesse ponto reside a compreensão de que o corpo configura-se como uma disputa entre as múltiplas tensões que o constituem. Uma pletora onde a afeto do mando acaba por esculpir um vencedor. O vencedor confunde-se com o eu. Contudo para além do estabelecimento de um sentido em uma multiplicidade nada há. Poderíamos dizer que o eu é apenas um palavra para uma composição provisória no jogo infinito das forças. A metáfora do pastor é significativa, pois torna explícita a compreensão de que a tensão não se resolve. Há apenas um imperar de um sentido, diante de uma multidão de afetos. 


Instrumento – Werkzeug – de teu corpo é, também, a tua pequena razão – Kleine Vernunft – à qual chamas espírito – Geist – pequeno instrumento – Werk – e brinquedo – Spielzeug  - da sua grande razão – große Vernunft.


Nessa passagem, Nietzsche alude a relação estabelecida entre a Kleine Vernunft ou Geist e a große Vernunft. Se aceitarmos a equiparação entre a noção de razão e espírito entender-se-á que ambos os casos estão a serviço da große Vernunft, ou do corpo. O corpo, como uma multiplicidade com um único sentido, exige e determina as nomeações que brotam do pensamento ou da razão. Pensar, sentir e querer são sintomas da grande razão, e não de um eu deslocado e desconectado do corpo. A noção de instrumentalidade apresenta-se como algo em que a utilidade está para um fim. O instrumento é apenas um meio. Quando necessito do machado, o mesmo se configura como possível, e não o contrário. Dar-se como instrumento é colocar-se à disposição do uso, com fins a permitir atingir o fim para o qual tende todo o sentido que ali se expressa e se exige. 

Eu – Ich – dizes; e orgulhas desta palavra. Mais ainda maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão – dein Leib und seine große Vernunft – esta não diz o eu, mas faz o eu – die sagt nicht Ich, aber tu Ich.

O eu, bem como a alma passam a ser tomados apenas como palavras que nomeiam algo que se dá enquanto corpo, pois não é possível ultrapassar o fato de que  o corpo enquanto große Vernunft determina as condições pelas quais o  mecanismo da nomeação se torna compreensível. A noção do eu, deslocado do corpo, emerge da necessidade de ultrapassagem do fato corpo e da confusão sobre a composição do afeto do mando. Colocar-se à distância já é um desdobramento do que ocorre, e não o contrário. Neste momento, o sentir, o querer e o pensar serão apenas instrumentos para as exigências do ser-próprio – Das Selbst. A suposta autonomia do Eu desfalece diante das necessidades e exigências do ser-próprio, na sua estrita necessidade e acaso, pois “aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem um fim em si mesmo”. A ilusão dos sentidos e do espírito – Kleine Vernunft  -  é persuadir-nos que são o fim em si mesmo. Desse modo, Nietzsche desloca o centro de produção do sentido para uma zona anterior aos sentidos e ao pensamento, sendo os mesmos apenas expressão de necessidades imanentes, porém anteriores - a espontaneidade do querer do Selbst.

E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjulga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu.

Ich bin das Gängelban – controlador, o que manda -  des Ichs und der Einbläser seiner Begriffe”.

Eu sou as andadeiras  do eu e o insulflador dos seus conceitos.


Dedução final.

Mesmo em vossa estultície e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta às costas à vida.
Não consegue mais o que quer acima de tudo: criar para além de si – über sich hinaus zu schaffen. Isto ele quer acima de tudo, é o seu fervido anseio.
Perecer quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para além de vós.   


A circularidade é desfeita quando o desprezo que emerge das avaliações dos desprezadores se apresentam como um sintoma de cansaço e lassidão, de um ser próprio, que diante da sua necessidade mais íntima, acaba por naufragar no seu ressentimento. Em última instância a incapacidade de criação para além de si, como expressão da vontade de poder, converte-se no último ato, em negação de si mesmo, da sua capacidade e desejo de ultrapassar-se. O desprezo assume a dianteira como o último ato de invenção, pois na incapacidade de reconhecer-se afirmativamente no jogo ingênuo do acaso sob a prerrogativa da criação, o ser próprio ressente-se em si mesmo, como faltoso, como incapaz de amar e afirmar o que há em si, no seu fervido anseio. Assim, Sócrates, Platão e o Cristianismo são revelados nas suas intenções mais básicas: caluniar a vida como sintoma da incapacidade de afirmar a si mesmo, e de buscar para além do corpo uma razão que possa justificar a sua lassidão. Ao final do aforismo Nietzsche revela o impacto que essas avaliações têm diante do anúncio do Übermesch, pois afinal, os desprezadores do corpo, “não devem mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo e emudecer.