De resto
abomino tudo aquilo que me instrui sem aumentar imediatamente a minha
atividade.
Goethe.
Carta a Erckeman.
Esse
breve ensaio brota de um assombro! Nasce da desconfiança de alunos frente à
leitura de textos filosóficos. Indaga sobre as possíveis relações entre os
vivos e os mortos, entre o instante reificado por uma memória e a presença de
um passado expresso na escrita de um filósofo. Tergiversa sobre a acusação: o
pensar dos filósofos é um impedimento ao pensamento. Constituem-se como uma
barreira à experiência de se abrir ao mundo, de se abrigar ao problemático do
existir. Por essa razão, incapazes de instaurar pensares e esculpir pensadores.
A História da Filosofia e as exigências inerentes à teia conceitual de um
pensamento são um grande empecilho para o exercício do pensar! Essa denúncia
brotou dos paticipantes de uma disciplina.
A
disciplina pretendia situar implicações das filosofias da diferença nos
horizontes da educação. O curso orientou-se pela questão do corpo no pensar de
Nietzsche e Deleuze. No decorrer das aulas, vários textos foram apresentados,
entre eles, uma passagem de Assim Falou
Zaratustra, intitulada, Os
desprezadores do Corpo. Um longo debate se deu em função da exposição de
alguns elementos compreensivos do texto de Nietzsche. A exposição sobre o tema
do corpo em Nietzsche ficou sobre responsabilidade de um dos alunos que cursava
a disciplina. A escolha do aluno se deu por seu interesse na questão e por sua
aproximação ao pensamento de Nietzsche.
Interessa-nos
deslocar alguns elementos da relação que se estabeleceu entre os alunos, a fala
daquele que pretendeu comentar e mediar o texto e a presença da História da Filosofia
no encontro dos estudantes e ouvintes da pós-graduação mediada pela fala de
Nietzsche.
A
relação estabelecida entre esses três elementos é um dos traços comuns à
construção de aulas de filosofia, nas quais habitam alunos, professores de
filosofia e textos de filósofos, chancelados pela História da Filosofia. Esse
triângulo relacional apresenta-se como um modo comum daquilo que ocorre na
formação em filosofia e corriqueiramente com aulas nas disciplinas de filosofia.
Alunos, texto e um professor. Professor, alunos e um texto; Texto, alunos e um
professor; professor, texto e uns alunos; Presente, passado e futuro; Instante,
memória e fragmentos... Trivialidades... Trivialidades... E,
se?!
O encontrar dos
encontros.
“Mas
todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de
poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma
função; e toda a história de uma coisa, um órgão, um uso, pode desse modo ser
uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes,
cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si.” (NIETZSCHE, 1888/2001,
pg. 66).
Como se dá um encontro? Quando ocorre
um encontro? Do lat. de cŏntra – defrontar-se. Estabelecer-se
junto e diante de. Fluxos ininterruptos de tensão permanente. Um dar-se diante
de com fins a impor o sentido que expressa um horizonte de necessidade, tornando
visíveis as condições demandadas por sua efetivação. No jogo do encontro se dá
a clareira da pletora. Debate constante de forças que almejam a extensão do
domínio. Não se pode pretender-se ao
encontro sem a presença do que se encontra nos encontros: o caráter hegemônico
da tensão dos afetos que impõe sua atuação. Por presença no que se encontra
tomam-se os afetos de mando que expressam ininterruptamente suas reivindicações
de poder. Dão-se como uma imposição, nos choques e entrechoques que tornam
visíveis o ímpeto de hegemonizar suas hierarquias. Trata-se em todo caso de
esculpir, estruturar, dar forma e voz. Nesse nível habitam apenas graus. Graus que
expressam modos de atuação em que se efetivam a afirmação de determinada
condição perspectival. Exigências valorativas, formas e sintomatologias, eis a
situação relacional da forças. Nos encontros povoam-se mundos...
Desse lugar, não nos é permitido supor
qualquer passividade nas relações em que se dão os encontros, pois o jogo das
disputas é o e-vidente no encontro.
Textos que se afirmam, alunos que se afirmam, professores que se afirmam, vozes
e ouvidos que se afirmam. Trivialidades? Passividades que se sujeitam aos
mandos e às obediências ou imposições de sentido e destino. Ludicidades? Um
uso, um órgão, funções que se estabeleceram em um devir carregado de oposições e
disputas. Trata-se em último caso de condições de sobrevivência.
O que devém no encontro apresenta-se
em devir, pois que algo há, que sendo, não deveio e ainda não deverá? Sem
interlocutor um texto perdura como uma sintomatologia. Descendo as suas
exigências, contempla-se os seus graus... os seus modos de hierarquizar e
exigir. Mesmo em silêncio um texto expressa suas condições de inteligibilidade,
seus sins e nãos, suas vidas e mortes. Na poeira da estante paira o exemplar de
uma vida. Escrita e vida são indissociáveis. Qualquer palavra de um mundo
possível nasce dessas condições.
Desnaturalizando
as relações nos encontros.
Um eu previamente existente? Uma
compreensão previamente existente? Um aluno previamente existente? Ou, modos de
ser das relações? Relar, esbarrar em um enfrentamento. As condições exigidas
por um eu supõem o conjunto de valores que constroem seu estilo. Por estilo
tomamos as configurações em uma determinada forma. Estilizar é o resultado das
disputas que se dão nos encontros. Estilo é o resíduo provisório da pletora
dada nos encontros. No encontro as
disputas clamam pela emergência do novo, da instituição de uma outra
configuração. A noção de agenciamento é potente, pois indica que a construção
se dá na relação que constitui um outro possível da experiência de ser e estar
no mundo. Encontrar é dar-se no aguardar de uma provisoriedade... Uma espécie
de gratidão. As inumeráveis possibilidades de encontro sugerem provisoriedades
indefinidas de formas. A provisoriedade de uma forma dá-se no jugo ininterrupto
das disputas no nível molecular das forças. Um texto, um professor, um aluno,
estilos que se apresentam no visível, no campo frutífero da instituição das
formas. A plasticidade como a resultante do encontro em que se agenciam as
relações.
Do presente, do passado
e do futuro.
Um
modo de ser do encontro dá-se com o passado, porém quanto de passado exige e
suporta um presente? Por presente toma-se a resultante daquilo que se afirma no
instante do agora. A afirmação remete para a estilização de uma hierarquia
provisória, no jogo ininterrupto dos encontros que firmam relações. O presente
é o durar de um instante da forma.
Quanto
de futuro exige e suporta um passado? No jugo daquilo que se afirma na memória
do presente mantém-se parcelas de passado, de estilos que se revisitados por
outras épocas – conjunto de estilos que se sobrepõem em determinado momento –
exigirão suas condições de afirmação, ousando perdurar nos encontros que virão.
Encontrar
com parcelas afirmativas de estilos passados figura-nos como o convite ao
encontro, porém, quanto de passado exige um presente? Há passados que ainda são
futuros? Há passados que ainda tornar-se-ão presentes? Nesse ponto reside o
trânsito em que se afirmam parcelas infinitas de passado. As relações vitais
que se podem estabelecer entre o presente e o passado apresentam-se como o a se
pensar da nossa questão, pois quanto de passado exige e permite o nosso
presente? A superação do instante no presente acaba por exigir a memória, mas
quanto de memória necessita o presente? Memória e presente, passado e presente,
memória e instante como indicies de relações que se efetivam em direção a uma
vitalidade.
Por
vitalidade toma-se a capacidade de tornar próprio o que é distante, de se esculpir
em uma relação a partir de outras exigências. Se em nós a memória figura como
um escape do instante, de uma abertura para um sentido para além do instante e
da sua fluidez permanente, possibilitando zonas de permanência, por outro lado,
pode vir a cristalizar momentos, construir monumentos. Após o advento da
memória, o risco que se corre é de se perder na conservação do mesmo, na busca
de afirmar uma identidade e com fins a preservação das semelhanças, sua
conservação. A memória nos salva do instante, mas pode nos aprisionar na lógica
do mesmo. A memória como a cristalização de uma hegemonia, da expressão de um
estilo em uma forma. O contato com zonas de passado, através da memória, nos
coloca diante da pletora das interpretações, do jogo das interpretações.
A História da Filosofia
e a presença da memória no presente.
Uma
vida que quer se afirmar para além da provisoriedade do instante exige a permanência?
A permanência exibe as condições valorativas nas quais se estrutura e se
cristaliza um estilo que expressa um modo de ser e de se dar um mundo. O
encontro com o texto de outrem supõe a pletora das relações entre os afetos.
Entrar em relação com um texto do passado, revisitando-o no presente, é
praticar o agônico da construção da forma. Desse modo, não nós é permitido ir
aquém desse limite das relações, pois trata-se da hegemonia de uma forma e de
um estilo – de uma tática. Reduzir a compreensão ao jugo das forças é instaurar
a pletora, quer diante da memória, quer diante da suspensão provisória do
instante. Porém, como se dá no jogo das relações a assimilação? Trata-se de
deixar-se determinar pelo sentido que se manifesta nas suas exigências vitais?
A
História da Filosofia se constituiu um empecilho ao pensamento quando sua
compreensão efetiva-se apenas como lembrança, como resido sonoro de um dito, de
uma vida. Sem o arrombamento é sempre inócua, apesar de ser um modo possível da
relação! A exigência da mera lembrança soa como paradoxal, pois como é possível
distinguir as exigências de incorporação de uma relação em que o jogo das
tensões se afirma e o mero exercício de decorar, de se aproximar com fins
apenas ao saber? Indicie crítico: ser
como os gregos: o que apreendiam, logo queriam viver? Como viver aquilo que se
apreende como passado se o passado mesmo já não é mais possível? Uma sabedoria ética diante do exercício de
distanciar-se de si mesmo, de abrir mão da hegemonização do mesmo de si...
Gratidão, como espaço fundante da compreensão. Contudo, quanto de gratidão
supõe e exige um presente?
Na senda de uma relação.
O intempestivo e a abertura ao devir do que há. O homem louco e o anúncio de
algo para além do tempo!
“O jogo do mundo, imperioso,
Mistura ser e aparência: -
O eterno-insano
Nos mistura dentro!...
É conhecido o anúncio da morte de Deus, pelo Homem louco, em Gaia Ciência. “Nunca ouviram falar
daquele homem louco que em plena
manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar
incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? Um dito, um escrito, uma
constatação e uma exigência. Uma porção de presente e de afirmação em um estilo
para um tempo que ainda não. Um dito: propõem em uma linguagem a construção de
um sentido que instaura um mundo outro para o Ocidente. Procurar Deus em plena
manhã, procurar Deus em pleno vigor do idealismo alemão – a flor do
esclarecimento do séc. XVIII e das pretensões legitimadoras da razão transcendental
kantiana. Procurar Deus em meio a nova aurora que se anuncia e se apresenta - quanto de loucura suporta a razão, e quanto
de loucura há na razão? Dito por um homem que ultrapassa o tempo por reconhecer
demasiadamente suas intenções, em um salto para além do humano e da suposta
sanidade da razão. Um dito que põe uma interrogação onde havia uma simples e
fulgurante afirmação – eu, Deus, sou a verdade! A constatação: a maior invenção
humana é destronada com a certeza de que sua procura é vã, pois o que sempre
esteve à mão, não mais se encontra, pois ‘Para onde foi Deus?, gritou ele! O a
se pensar da questão põe em sua vidência o problema que nos diz respeito, pois
o presente de Nietzsche estava a altura das suas exigências? Os homens da praça
pública estão a altura daquilo que o seu tempo exige-lhes? O homem louco não
deixa dúvidas: “Eu venho cedo demais!”
Cedo demais! Feito um raio! Ser
portador de uma exigência, de uma inusitada experiência. Sobretudo, na
densidade de uma experiência. Na experiência instaura-se uma outra disposição
de forças, uma nova configuração no plano das formas e da composição de um
estilo. Cedo demais! A questão da assimilação aciona o sentido da
impropriedade, uma distância que convida ao encontro, contudo exibe a diferença
nas avaliações e do jogo de signos expressivos de uma sintomatologia
específica. Estar no tempo, ser filho do tempo, contudo para além do tempo. No
tempo e contra o tempo com fins a afirmar o advir. Seria o para além do tempo a
condição pela qual um pensamento inaugura um mundo? Seria a exigência de outro
modo de pensar, na sinfonia do pensamento, correlata à negação do tempo, da
violência que torna sensível a presença mesma do pensador e do pensamento? O
que dá a pensar, figura como signo de uma exigência outra, de uma aurora?
O
mergulho no pensamento e a experimentação do assombro.
O incomodo gerado pela presença de um
pensamento, o deslocamento exigido pela sentido imposto por uma configuração
outra, soa-nos como o paradoxal do encontro com o pensar de um autor, pois se
já sabíamos daquele pensar ou se o assimilamos sem algum violência, não houve
pensar. A assimilação pela semelhança reduz a diferença ao mesmo de uma
identidade. Sua exclusão retira-o do universo da compreensão por abolir o
embate. A tensão, via de regra, afirma-se nos afetos disparados por um
pensamento, das suas implicações nos âmbitos do ser e estar no mundo. Um
pensamento que não arromba, que não violenta, não é capaz de restituir o
assombro a partir do qual nasceu. A pertubação, a desorganização gerada
pelo esbarro com exigências outras pode
instaurar a potência de mergulhar na experiência que o gerou?... Pensar a
partir da História da Filosofia é uma re-sensibilização daquilo que disparou os
processos da produção daquele conjunto de signos. O balbucio nas línguas, no
gozo do pensador na linguagem, não é capaz de esgotar as exigências sensíveis
pelas quais o pensamento brota. Vir cedo demais. Não ser desse tempo marcam os pensares e os
pensadores na Terra! A fuga aos portos seguros da afirmação daquilo que já se
sabe, da identidade na dessemelhança, e da manutenção de uma memória são apenas
indícios do jogo que pretende perdurar suas afirmações. Desse modo, a História
da filosofia, no conjunto dos seus
textos, é um desafio para aqueles que como o mundo jogam a partida até o seu
lance último: a abertura... Nada mais humano... Manter-se protegido, abrigado,
por uma fresta de luz, e porque não, de sombra... À luz do mesmo, nada sobrevive, apenas a
semelhança pode-se afirmar: Venho cedo demais... Deus morreu! Somos nós, eu e tu, os seus assassinos...
Tornar sensível a experiência de um pensar...
!!!!
Uma velha e forte porta foi abandonada
a cães bravios.
No início, desconheciam a profundidade
da possibilidade. Poderiam
comer uns aos outros, poderiam deixar de ser. Mesmo
o lugar da porta velha deixaria de ser e um grande nada viria a perdurar sobre
todos os seguintes anos... Na
altura do uivo, um cão surdo, aos prazeres da lua, desferiu o seu golpe: temos
ainda o que somos... Celebraram festivamente
aquela noite... Como crianças queimaram portas pelo caminho - Se
temos chaves, de que valem portas?