segunda-feira, 16 de abril de 2012

O que pode um corpo


Von den Verächtern des Leibes -  Os desprezadores do corpo.

Por Marcos Vinícius Leite.

O que pode um corpo?

Antes de abordamos as passagens em seus conteúdos gostaríamos de destacar duas questões.

Nietzsche se dirige aos desprezadores do corpo, não ao desprezador do corpo, mas a um conjunto de valorações que ultrapassa a presença em algum indivíduo de modo isolado. A extensão é compreensiva, pois o endereçamento do questionamento vai ao encontro das valorações praticadas na cultura Ocidental, no estabelecimento das avaliações que instituíram as relações entre o corpo-alma, o corpo-razão, o corpo-pensamento.

Na medida em que amadurece no seu projeto de Transvaloração dos Valores, Nietzsche avança no ataque aos inauguradores da decadência no Ocidente, acabando por identificá-los como Sócrates, Platão e os instituidores do Cristianismo.  Se tomarmos a afirmação de Ecce Homo como definitiva, como índice do acabamento do projeto crítico de Nietzsche, perceberemos que a oposição derradeira passa a ser entre Dionísio e o cruxificado. Outrora, Dionísio voltava-se contra Sócrates e Platão, haja vista a produção do Nascimento da Tragédia.

Para além dessas afirmações é necessário reconhecer uma outra, o cristianismo é tomado apenas como uma vulgarização do platonismo. Desse modo, o ataque aos desprezadores do corpo alinha-se ao projeto maior do anúncio do Übermensch e da certificação de que o homem é algo que deve ser ultrapassado. Para tal os desprezadores também terão de sê-lo, quando desvelados nas suas intenções valorativas.  

Um outro ponto que merece destaque é a noção de desprezo. Para escaparmos à falsa circularidade, pressuposta na argumentação, na qual a noção a ser definida é pressuposta pela definição, temos que enfrentar a pergunta sobre a origem da noção de desprezo do corpo.

Os procedimentos adotados por Nietzsche na construção dos seus ataques no projeto de Transvaloração dos Valores, deparam-se com os pressupostos genealógicos já desenvolvidos em outras ocasiões. Nietzsche nomeia de  inferência regressiva o modo do seu filosofar, como um desdobramento da análise genealógica, na qual, parte-se da obra, para o autor e do autor para a hierarquia de forças que se estabeleceu como condição que inaugura a forma e o dizer de dada hierarquia constituída em uma relação de forças.

Na análise das forças Nietzsche as identifica como fortes e fracas, ativas e reativas. Na análise genealógica as obras são convocadas a apresentar as suas intenções e sentidos na revelação da quantidade e qualidade das suas forças e suas relações de mando/obediência.

Desprezar é constituir-se na expressão sintomatológica da negação, como fruto das forças no seu aspecto fraco e reativo. No aforismo Os Trasmundanos -  Von den Hinterweltlern -  Nietzsche identifica o desejo de ultramundos como nascido de corpos enfermos. A enfermidade expressa-se como o desejo de sair de si e de se ver como algo para além do corpo e distinto dele.

Estar para além do corpo: é nesse lugar que reside a ação de desprezar, entretanto, o desprezo nasce de um corpo que se pretende para além de si mesmo, não como transcendência de sua própria imanência, mas como negação da imanência, quando da postulação da ideia de falta. A atestação da falta produz a necessidade de se buscar e edificar um além dê.

Por falta, compreende-se a valoração que toma como insuportável a inocência do devir do que há. O desprezo nasce da valoração que clama e exige um para além, revelando-se como um sintoma que interpreta a ausência de sentido daquilo que se apresenta, no modo pelo qual se apresenta, como faltosa. O desprezo nasce na afirmação do que se apresenta como falta. Desprezar seria a valoração que expressa e confunde o ato de negação como seu ato de afirmação. Afirmar pela negação passa a ser o modo pelo qual o corpo desprezador irá se dar como forma/voz. Desse modo, desprezar é atacar como faltoso aquilo que se apresenta como sendo o que é.

Nietzsche nomeia de fraqueza a incapacidade da afirmação cujo desdobramento dar-se-á como ressentimento.  Assim, as forças que jogam nos desprezadores indicam o seu sentido como fracas e ressentidas, acabando por instituir a valoração de corpo faltoso e eu soberano, que se desdobrará na noção de alma-imortal em um corpo-mortal.

A investigação genealógica do dualismo irá destituir a certeza da divisão puro-impuro, seguro-inseguro, alma-corpo, pois irá subverter as valorações  oriundas de sua nomeação filosófica. A nomeação passará a ser apenas expressão de um sintoma, e não mais a posse da verdade do sentido do ser. A nomeação brotaria de um modo possível de hierarquização das forças, que nesse caso, se tornaram hegemônicas a partir da sua fraqueza e reatividade. Reatividade expressa nos momentos civilizacionais assumindo-se como formas-homens, como Sócrate-Platão-Cristianismo, acabando por instituir e ensejar o dualismo, como criação desses corpos. Porém, a hegemonia de uma hierarquia de relações de forças não atesta a sobreposição, pelo afeto de comando, dos casos da afirmação. Nietzsche deixa claro que em muitos momentos históricos as forças fracas e reativas tentaram fazer sucumbir as demais hierarquias possíveis. O fato da fraqueza e do ressentimento não indica a ausência de vitória. Interessante notar que a noção de extermínio brota como sintoma das hierarquias edificadas sobre a égide da fraqueza e do ressentimento.  


Análise do aforismo.

Quero dizer a minha palavra aos desprezados do corpo. Não devem mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas dizer adeus ao seu corpo e emudecer.

A incompatibilidade entre as hierarquias torna-se visível na compreensão que se segue, pois o sentido da fraqueza não poderá ser revertido. Esse é um dos pontos fundamentais ao pensamento de Nietzsche e  sua postulação de que a decadência não é capaz de ser revertida em si mesma, pois o conjunto de valoração é apenas a expressão da composição das forças em uma disposição  de relação. A hierarquia se hegemoniza, através do afeto do mando,  determinismo vinculado à efetivação de uma hierarquização em qualquer relação de forças. As relações e hierarquias são expressões dos processos interpretativos que a tudo ronda e graça. Haja vista a certeza de que a educação para o amanhã dar-se-á hoje, porém, será vivida no amanhã. Assim, querer que a fraqueza se converta em afirmação é uma impossibilidade diante do factum do destino. Nesse ponto reside a radicalidade do eterno-retorno como máxima afirmação, pois articula o assim o foi, como um assim eu quis. A incompatibilidade assinala a possibilidade de abrirmos os espaços para a experimentação de novas hierarquias e corpos, contudo, a condição de possibilidade assenta-se para aquém do humano. O certo é que o abandono das hierarquizações é possível diante do desmascaramento das suas intenções enquanto assentado em um projeto de verdade, apenas sintomas, perspectivas parciais e interessadas tomados como verdades absolutas e universais.  

Eu sou corpo e alma -  Leib bin ich und Seele – assim fala a criança.
Mas o desperto, sabedor, diz – Leib bin ich ganz und gar, und nichts aßerdem, Eu sou todo corpo e nada além disso; e  a alma é apenas uma palavra para algo no corpo – und Seele ist nur (apenas)  ein Wort für ein Etwas (algo)  am Leibe.

A tensão é estabelecida a partir de duas interpretações, ambas oriundas de uma hierarquia possível. Na primeira, o corpo é acrescido de uma alma que o ultrapassa naquilo que é. A alma não se confunde com o corpo, apesar de nele participar. Esse é um problema que ronda todo o dualismo antropológico nas suas expressões, platônica, agostiniana e cartesiana. De qualquer maneira, ocorre em função da noção de falta, pois em todos os casos a postulação da alma separada do corpo nasceu da necessidade de encontrar um fundamento para o mundo.  Nesse ponto há uma convergência entre a construção da metafísica e a construção dos corpos que lhe dizem respeito. A instauração de um padrão para o que se toma como verdadeiro, a instauração de uma moralidade e a instauração de processos que inauguram uma forma-homem se co-pertencem.

Contudo, a segunda hierarquia nasce da composição de uma forma-homem em que a ultrapassagem da metafísica se anuncia. A não correspondência entre as avaliações se dá em função da composição da hierarquia de forças que as antecede. A reversão do platonismo se insinua no momento em que a noção de corpo passa a ser tomada na sua totalidade. Não há mais a distinção entre um corpo e uma alma, mas a alma passa a ser apenas uma palavra para algo no corpo. Dizer sou todo corpo e, nada além disso, nos posiciona no pensamento da e pela imanência.

A primeira circularidade é desfeita, pois foram determinados corpos que construíram a oposição, e por construí-la, o corpo foi visto como uma exterioridade, um não-eu, que deveria ser superado. Assim, o salto para além da interpretação dualista não se esgota na reversão do lugar ocupado na hierarquia vigente, pois colocar o corpo no lugar da alma nos mantém na oposição. A ultrapassagem se dará quando outras interpretações vierem à tona. A proposta de Nietzsche vê o corpo como expressão da vontade de poder, como um modo de ser da realidade - sou todo corpo e nada além disso.  A alma passa a ser apenas uma palavra que, no nosso caso, revela um conjunto de sintomas, a expressão de uma relação de forças em uma determinada hierarquia.

O corpo é uma grande razão – Der Leib ist seine große Vernunft. O corpo é uma grande razão, uma instauração de sentido, a partir das suas exigências de interpretação. Tomar o corpo nessa radicalidade é inclui-lo na dinâmica de produção de sentido como desdobramento das relações de forças no combate  da vontade de poder.

Uma multiplicidade com um único sentido – eine Vielheit mit Einem Sinn, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor – eine Herde und ein Hirt.  Nesse ponto reside a compreensão de que o corpo configura-se como uma disputa entre as múltiplas tensões que o constituem. Uma pletora onde a afeto do mando acaba por esculpir um vencedor. O vencedor confunde-se com o eu. Contudo para além do estabelecimento de um sentido em uma multiplicidade nada há. Poderíamos dizer que o eu é apenas um palavra para uma composição provisória no jogo infinito das forças. A metáfora do pastor é significativa, pois torna explícita a compreensão de que a tensão não se resolve. Há apenas um imperar de um sentido, diante de uma multidão de afetos. 


Instrumento – Werkzeug – de teu corpo é, também, a tua pequena razão – Kleine Vernunft – à qual chamas espírito – Geist – pequeno instrumento – Werk – e brinquedo – Spielzeug  - da sua grande razão – große Vernunft.


Nessa passagem, Nietzsche alude a relação estabelecida entre a Kleine Vernunft ou Geist e a große Vernunft. Se aceitarmos a equiparação entre a noção de razão e espírito entender-se-á que ambos os casos estão a serviço da große Vernunft, ou do corpo. O corpo, como uma multiplicidade com um único sentido, exige e determina as nomeações que brotam do pensamento ou da razão. Pensar, sentir e querer são sintomas da grande razão, e não de um eu deslocado e desconectado do corpo. A noção de instrumentalidade apresenta-se como algo em que a utilidade está para um fim. O instrumento é apenas um meio. Quando necessito do machado, o mesmo se configura como possível, e não o contrário. Dar-se como instrumento é colocar-se à disposição do uso, com fins a permitir atingir o fim para o qual tende todo o sentido que ali se expressa e se exige. 

Eu – Ich – dizes; e orgulhas desta palavra. Mais ainda maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão – dein Leib und seine große Vernunft – esta não diz o eu, mas faz o eu – die sagt nicht Ich, aber tu Ich.

O eu, bem como a alma passam a ser tomados apenas como palavras que nomeiam algo que se dá enquanto corpo, pois não é possível ultrapassar o fato de que  o corpo enquanto große Vernunft determina as condições pelas quais o  mecanismo da nomeação se torna compreensível. A noção do eu, deslocado do corpo, emerge da necessidade de ultrapassagem do fato corpo e da confusão sobre a composição do afeto do mando. Colocar-se à distância já é um desdobramento do que ocorre, e não o contrário. Neste momento, o sentir, o querer e o pensar serão apenas instrumentos para as exigências do ser-próprio – Das Selbst. A suposta autonomia do Eu desfalece diante das necessidades e exigências do ser-próprio, na sua estrita necessidade e acaso, pois “aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem um fim em si mesmo”. A ilusão dos sentidos e do espírito – Kleine Vernunft  -  é persuadir-nos que são o fim em si mesmo. Desse modo, Nietzsche desloca o centro de produção do sentido para uma zona anterior aos sentidos e ao pensamento, sendo os mesmos apenas expressão de necessidades imanentes, porém anteriores - a espontaneidade do querer do Selbst.

E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjulga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu.

Ich bin das Gängelban – controlador, o que manda -  des Ichs und der Einbläser seiner Begriffe”.

Eu sou as andadeiras  do eu e o insulflador dos seus conceitos.


Dedução final.

Mesmo em vossa estultície e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta às costas à vida.
Não consegue mais o que quer acima de tudo: criar para além de si – über sich hinaus zu schaffen. Isto ele quer acima de tudo, é o seu fervido anseio.
Perecer quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para além de vós.   


A circularidade é desfeita quando o desprezo que emerge das avaliações dos desprezadores se apresentam como um sintoma de cansaço e lassidão, de um ser próprio, que diante da sua necessidade mais íntima, acaba por naufragar no seu ressentimento. Em última instância a incapacidade de criação para além de si, como expressão da vontade de poder, converte-se no último ato, em negação de si mesmo, da sua capacidade e desejo de ultrapassar-se. O desprezo assume a dianteira como o último ato de invenção, pois na incapacidade de reconhecer-se afirmativamente no jogo ingênuo do acaso sob a prerrogativa da criação, o ser próprio ressente-se em si mesmo, como faltoso, como incapaz de amar e afirmar o que há em si, no seu fervido anseio. Assim, Sócrates, Platão e o Cristianismo são revelados nas suas intenções mais básicas: caluniar a vida como sintoma da incapacidade de afirmar a si mesmo, e de buscar para além do corpo uma razão que possa justificar a sua lassidão. Ao final do aforismo Nietzsche revela o impacto que essas avaliações têm diante do anúncio do Übermesch, pois afinal, os desprezadores do corpo, “não devem mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo e emudecer.







     

sábado, 14 de abril de 2012

Ninguém Conhece a Si Mesmo




Julga que se conhece, se não se construir de algum modo? E julga que eu posso conhecê-lo, se não o construir à minha maneira? E julga que me pode conhecer, se não me construir à sua maneira? Só podemos conhecer aquilo a que conseguimos dar forma. Mas que conhecimento pode ser esse? Não será essa forma a própria coisa? Sim, tanto para mim como para si; mas não da mesma maneira para mim e para si: isso é tão verdade que eu não me reconheço na forma que você me dá, nem você se reconhece na forma que eu lhe dou; e a mesma coisa não é igual para todos e mesmo para cada um de nós pode mudar constantemente. E, contudo, não há outra realidade fora desta, a não ser na forma momentânea que conseguimos dar a nós mesmos, aos outros e às coisas. A realidade que eu tenho para si está na forma que você me dá; mas é realidade para si, não é para mim. E, para mim mesmo, eu não tenho outra realidade senão na forma que consigo dar a mim próprio. Como? Construindo-me, precisamente. 

Luigi Pirandello, in "Um, Ninguém e Cem Mil"

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Questão

O que pode um corpo?
Velocidades e lentidão;
Movimento e repouso.
Agenciamentos em devires?

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Simples

O caminho
A companhia
Amor


Edson 05.04.2012