Von den Verächtern des Leibes - Os
desprezadores do corpo.
Por Marcos Vinícius Leite.
O que pode um corpo?
Antes
de abordamos as passagens em seus conteúdos gostaríamos de destacar duas
questões.
Nietzsche
se dirige aos desprezadores do corpo, não ao desprezador do corpo, mas a um
conjunto de valorações que ultrapassa a presença em algum indivíduo de modo
isolado. A extensão é compreensiva, pois o endereçamento do questionamento vai
ao encontro das valorações praticadas na cultura Ocidental, no estabelecimento
das avaliações que instituíram as relações entre o corpo-alma, o corpo-razão, o
corpo-pensamento.
Na
medida em que amadurece no seu projeto de Transvaloração
dos Valores, Nietzsche avança no ataque aos inauguradores da decadência no Ocidente, acabando por identificá-los
como Sócrates, Platão e os instituidores do Cristianismo. Se tomarmos a afirmação de Ecce Homo como
definitiva, como índice do acabamento do projeto crítico de Nietzsche,
perceberemos que a oposição derradeira passa a ser entre Dionísio e o cruxificado.
Outrora, Dionísio voltava-se contra Sócrates e Platão, haja vista a produção do
Nascimento da Tragédia.
Para
além dessas afirmações é necessário reconhecer uma outra, o cristianismo é
tomado apenas como uma vulgarização do platonismo. Desse modo, o ataque aos
desprezadores do corpo alinha-se ao projeto maior do anúncio do Übermensch e da certificação de que o
homem é algo que deve ser ultrapassado. Para tal os desprezadores também terão
de sê-lo, quando desvelados nas suas intenções valorativas.
Um
outro ponto que merece destaque é a noção de desprezo. Para escaparmos à falsa
circularidade, pressuposta na argumentação, na qual a noção a ser definida é
pressuposta pela definição, temos que enfrentar a pergunta sobre a origem da noção
de desprezo do corpo.
Os
procedimentos adotados por Nietzsche na construção dos seus ataques no projeto
de Transvaloração dos Valores, deparam-se
com os pressupostos genealógicos já desenvolvidos em outras ocasiões. Nietzsche
nomeia de inferência regressiva o modo do seu filosofar, como um desdobramento
da análise genealógica, na qual, parte-se da obra, para o autor e do autor para
a hierarquia de forças que se estabeleceu como condição que inaugura a forma e
o dizer de dada hierarquia constituída em uma relação de forças.
Na
análise das forças Nietzsche as identifica como fortes e fracas, ativas e
reativas. Na análise genealógica as obras são convocadas a apresentar as suas
intenções e sentidos na revelação da quantidade e qualidade das suas forças e
suas relações de mando/obediência.
Desprezar
é constituir-se na expressão sintomatológica da negação, como fruto das forças
no seu aspecto fraco e reativo. No aforismo Os
Trasmundanos - Von den
Hinterweltlern - Nietzsche identifica o
desejo de ultramundos como nascido de corpos enfermos. A enfermidade expressa-se
como o desejo de sair de si e de se ver como algo para além do corpo e distinto
dele.
Estar
para além do corpo: é nesse lugar que reside a ação de desprezar, entretanto, o
desprezo nasce de um corpo que se pretende para além de si mesmo, não como
transcendência de sua própria imanência, mas como negação da imanência, quando
da postulação da ideia de falta. A atestação da falta produz a necessidade de
se buscar e edificar um além dê.
Por
falta, compreende-se a valoração que toma como insuportável a inocência do
devir do que há. O desprezo nasce da valoração que clama e exige um para além, revelando-se
como um sintoma que interpreta a ausência de sentido daquilo que se apresenta,
no modo pelo qual se apresenta, como faltosa. O desprezo nasce na afirmação do
que se apresenta como falta. Desprezar seria a valoração que expressa e
confunde o ato de negação como seu ato de afirmação. Afirmar pela negação passa
a ser o modo pelo qual o corpo desprezador irá se dar como forma/voz. Desse
modo, desprezar é atacar como faltoso aquilo que se apresenta como sendo o que
é.
Nietzsche
nomeia de fraqueza a incapacidade da afirmação cujo desdobramento dar-se-á como
ressentimento. Assim, as forças que
jogam nos desprezadores indicam o seu sentido como fracas e ressentidas,
acabando por instituir a valoração de corpo faltoso e eu soberano, que se
desdobrará na noção de alma-imortal em um corpo-mortal.
A
investigação genealógica do dualismo irá destituir a certeza da divisão
puro-impuro, seguro-inseguro, alma-corpo, pois irá subverter as valorações oriundas de sua nomeação filosófica. A nomeação
passará a ser apenas expressão de um sintoma, e não mais a posse da verdade do
sentido do ser. A nomeação brotaria de um modo possível de hierarquização das
forças, que nesse caso, se tornaram hegemônicas a partir da sua fraqueza e
reatividade. Reatividade expressa nos momentos civilizacionais assumindo-se
como formas-homens, como Sócrate-Platão-Cristianismo, acabando por instituir e
ensejar o dualismo, como criação desses corpos. Porém, a hegemonia de uma
hierarquia de relações de forças não atesta a sobreposição, pelo afeto de
comando, dos casos da afirmação. Nietzsche deixa claro que em muitos momentos
históricos as forças fracas e reativas tentaram fazer sucumbir as demais hierarquias
possíveis. O fato da fraqueza e do ressentimento não indica a ausência de
vitória. Interessante notar que a noção de extermínio brota como sintoma das
hierarquias edificadas sobre a égide da fraqueza e do ressentimento.
Análise do aforismo.
Quero dizer a minha palavra aos
desprezados do corpo. Não devem mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas,
apenas dizer adeus ao seu corpo e emudecer.
A
incompatibilidade entre as hierarquias torna-se visível na compreensão que se
segue, pois o sentido da fraqueza não poderá ser revertido. Esse é um dos
pontos fundamentais ao pensamento de Nietzsche e sua postulação de que a decadência não é capaz
de ser revertida em si mesma, pois o conjunto de valoração é apenas a expressão
da composição das forças em uma disposição de relação. A hierarquia se hegemoniza,
através do afeto do mando, determinismo vinculado
à efetivação de uma hierarquização em qualquer relação de forças. As relações e
hierarquias são expressões dos processos interpretativos que a tudo ronda e
graça. Haja vista a certeza de que a educação para o amanhã dar-se-á hoje,
porém, será vivida no amanhã. Assim, querer que a fraqueza se converta em
afirmação é uma impossibilidade diante do factum do destino. Nesse ponto reside
a radicalidade do eterno-retorno como máxima afirmação, pois articula o assim o
foi, como um assim eu quis. A incompatibilidade assinala a possibilidade de
abrirmos os espaços para a experimentação de novas hierarquias e corpos,
contudo, a condição de possibilidade assenta-se para aquém do humano. O certo é
que o abandono das hierarquizações é possível diante do desmascaramento das
suas intenções enquanto assentado em um projeto de verdade, apenas sintomas,
perspectivas parciais e interessadas tomados como verdades absolutas e
universais.
Eu sou corpo e alma - Leib bin ich und Seele – assim fala a
criança.
Mas o desperto, sabedor, diz – Leib bin
ich ganz und gar, und nichts aßerdem, Eu sou todo corpo e nada além disso;
e a alma é apenas uma palavra para algo
no corpo – und Seele ist nur (apenas)
ein Wort für ein Etwas (algo) am
Leibe.
A
tensão é estabelecida a partir de duas interpretações, ambas oriundas de uma
hierarquia possível. Na primeira, o corpo é acrescido de uma alma que o
ultrapassa naquilo que é. A alma não se confunde com o corpo, apesar de nele
participar. Esse é um problema que ronda todo o dualismo antropológico nas suas
expressões, platônica, agostiniana e cartesiana. De qualquer maneira, ocorre em
função da noção de falta, pois em todos os casos a postulação da alma separada
do corpo nasceu da necessidade de encontrar um fundamento para o mundo. Nesse ponto há uma convergência entre a
construção da metafísica e a construção dos corpos que lhe dizem respeito. A instauração
de um padrão para o que se toma como verdadeiro, a instauração de uma moralidade
e a instauração de processos que inauguram uma forma-homem se co-pertencem.
Contudo,
a segunda hierarquia nasce da composição de uma forma-homem em que a
ultrapassagem da metafísica se anuncia. A não correspondência entre as
avaliações se dá em função da composição da hierarquia de forças que as
antecede. A reversão do platonismo se insinua no momento em que a noção de
corpo passa a ser tomada na sua totalidade. Não há mais a distinção entre um
corpo e uma alma, mas a alma passa a ser apenas uma palavra para algo no corpo.
Dizer sou todo corpo e, nada além disso, nos posiciona no pensamento da e pela
imanência.
A
primeira circularidade é desfeita, pois foram determinados corpos que
construíram a oposição, e por construí-la, o corpo foi visto como uma
exterioridade, um não-eu, que deveria ser superado. Assim, o salto para além da
interpretação dualista não se esgota na reversão do lugar ocupado na hierarquia
vigente, pois colocar o corpo no lugar da alma nos mantém na oposição. A
ultrapassagem se dará quando outras interpretações vierem à tona. A proposta de
Nietzsche vê o corpo como expressão da vontade de poder, como um modo de ser da
realidade - sou todo corpo e nada além disso. A alma passa a ser apenas uma palavra que, no
nosso caso, revela um conjunto de sintomas, a expressão de uma relação de
forças em uma determinada hierarquia.
O corpo é uma grande razão – Der Leib
ist seine große Vernunft. O corpo é
uma grande razão, uma instauração de sentido, a partir das suas exigências de
interpretação. Tomar o corpo nessa radicalidade é inclui-lo na dinâmica de
produção de sentido como desdobramento das relações de forças no combate da vontade de poder.
Uma multiplicidade com um único sentido
– eine Vielheit mit Einem Sinn, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor –
eine Herde und ein Hirt. Nesse ponto reside a compreensão de que o
corpo configura-se como uma disputa entre as múltiplas tensões que o constituem.
Uma pletora onde a afeto do mando acaba por esculpir um vencedor. O vencedor
confunde-se com o eu. Contudo para além do estabelecimento de um sentido em uma
multiplicidade nada há. Poderíamos dizer que o eu é apenas um palavra para uma composição
provisória no jogo infinito das forças. A metáfora do pastor é significativa,
pois torna explícita a compreensão de que a tensão não se resolve. Há apenas um
imperar de um sentido, diante de uma multidão de afetos.
Instrumento – Werkzeug – de teu corpo
é, também, a tua pequena razão – Kleine Vernunft – à qual chamas espírito –
Geist – pequeno instrumento – Werk – e brinquedo – Spielzeug - da sua grande razão – große Vernunft.
Nessa
passagem, Nietzsche alude a relação estabelecida entre a Kleine Vernunft ou Geist e a große Vernunft. Se aceitarmos a
equiparação entre a noção de razão e espírito entender-se-á que ambos os casos
estão a serviço da große Vernunft, ou
do corpo. O corpo, como uma multiplicidade com um único sentido, exige e determina
as nomeações que brotam do pensamento ou da razão. Pensar, sentir e querer são
sintomas da grande razão, e não de um eu deslocado e desconectado do corpo. A
noção de instrumentalidade apresenta-se como algo em que a utilidade está para
um fim. O instrumento é apenas um meio. Quando necessito do machado, o mesmo se
configura como possível, e não o contrário. Dar-se como instrumento é
colocar-se à disposição do uso, com fins a permitir atingir o fim para o qual
tende todo o sentido que ali se expressa e se exige.
Eu – Ich – dizes; e orgulhas desta
palavra. Mais ainda maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua
grande razão – dein Leib und seine große Vernunft – esta não diz o eu, mas faz
o eu – die sagt nicht Ich, aber tu Ich.
O
eu, bem como a alma passam a ser tomados apenas como palavras que nomeiam algo
que se dá enquanto corpo, pois não é possível ultrapassar o fato de que o corpo enquanto große Vernunft determina as condições pelas quais o mecanismo da nomeação se torna compreensível.
A noção do eu, deslocado do corpo, emerge da necessidade de ultrapassagem do
fato corpo e da confusão sobre a composição do afeto do mando. Colocar-se à
distância já é um desdobramento do que ocorre, e não o contrário. Neste
momento, o sentir, o querer e o pensar serão apenas instrumentos para as
exigências do ser-próprio – Das Selbst.
A suposta autonomia do Eu desfalece diante das necessidades e exigências do
ser-próprio, na sua estrita necessidade e acaso, pois “aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece,
nunca tem um fim em si mesmo”. A ilusão dos sentidos e do espírito – Kleine
Vernunft - é persuadir-nos que são o fim em si mesmo.
Desse modo, Nietzsche desloca o centro de produção do sentido para uma zona
anterior aos sentidos e ao pensamento, sendo os mesmos apenas expressão de
necessidades imanentes, porém anteriores - a espontaneidade do querer do Selbst.
E sempre o ser próprio escuta e
procura: compara, subjulga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador
do eu.
Ich
bin das Gängelban – controlador, o que manda -
des Ichs und der Einbläser seiner Begriffe”.
Eu sou as andadeiras do eu e o insulflador dos seus conceitos.
Dedução final.
Mesmo em vossa estultície e desprezo, ó
desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é
justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta às costas à vida.
Não consegue mais o que quer acima de
tudo: criar para além de si – über sich hinaus zu schaffen. Isto ele quer acima
de tudo, é o seu fervido anseio.
Perecer quer o vosso ser próprio, e por
isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para
além de vós.
A
circularidade é desfeita quando o desprezo que emerge das avaliações dos
desprezadores se apresentam como um sintoma de cansaço e lassidão, de um ser
próprio, que diante da sua necessidade mais íntima, acaba por naufragar no seu
ressentimento. Em última instância a incapacidade de criação para além de si,
como expressão da vontade de poder, converte-se no último ato, em negação de si
mesmo, da sua capacidade e desejo de ultrapassar-se. O desprezo assume a dianteira
como o último ato de invenção, pois na incapacidade de reconhecer-se
afirmativamente no jogo ingênuo do acaso sob a prerrogativa da criação, o ser
próprio ressente-se em si mesmo, como faltoso, como incapaz de amar e afirmar o
que há em si, no seu fervido anseio. Assim, Sócrates, Platão e o Cristianismo
são revelados nas suas intenções mais básicas: caluniar a vida como sintoma da
incapacidade de afirmar a si mesmo, e de buscar para além do corpo uma razão
que possa justificar a sua lassidão. Ao final do aforismo Nietzsche revela o
impacto que essas avaliações têm diante do anúncio do Übermesch, pois afinal,
os desprezadores do corpo, “não devem mudar
o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo e
emudecer.